Carneiro, Wálber - Artigo.Teorias.Fundamentais.Ecologia.docx

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TEORIAS ECOLÓGICAS DO DIREITO: por uma reconstrução crítica das teorias do direito

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1. INTRODUÇÃO

O séc. XIX revelou as dificuldades tanto das abordagens jusracionalistas quanto das abordagens positivistas primitivas que tentavam suprir o nível de organização teórico-conceitual do direito ou reduzi-la a uma tecnologia hermenêutica de cariz metódico. Tanto a justificação racionalista do direito quanto a reprodução dessa lógica no nível hermenêutico ou conceitual apresentavam dificuldades, seja no âmbito do fundamento, seja na capacidade de o direito positivo responder a problemas concretos de uma sociedade que se modificava rapidamente. Como alternativas, surgem diferentes abordagens teóricas que deslocavam o objeto de reflexão para o fato social (sociologismo)[1], para a interdisciplinaridade científica[2] (livre investigação científica), para o voluntarismo decisionista[3] (direito livre) ou para a otimização econômica[4] (realismo norte-americano). Em paralelo, alguns autores germânicos iniciaram um movimento que tentava desconectar os conceitos jurídicos fundamentais de ancoragens jusnaturalistas, esvaziando seu conteúdo substancial e enfatizando seu caráter descritivo-estrutural. É neste contexto que surge o que chamamos comumente de Teoria Geral do Direito - TGD[5].

Desde então, a reflexão teórica do civil law mantém uma relação próxima e, ao mesmo tempo, ambígua com a Teoria Geral do Direito. Próxima porque a TGD continua fazendo parte dos currículos universitários e dos manuais introdutórios. Ambígua porque essa mesma estrutura curricular há muito convive com novas matérias cujo conteúdo sugere deficits na abordagem estrutural da TGD, ainda que as teorias que ocupam esses novos espaços continuem sendo diretamente influenciadas pela TGD. O diagnóstico que aqui iremos propor considera que a fragmentação teórica observada no pós-guerra, embora aponte para uma superação da TGD, mantém a perspectiva de auto-observação que a ela carrega desde as primeiras abordagens estruturais. Essa característica transporta para os modelos teóricos mais recentes a incapacidade de observação do ambiente no qual o direito está imerso, deixando de contribuir para a comunicação com os demais sistemas.

Partindo de uma avaliação crítica da Teoria Geral do Direito – TGD, o texto examinará o fenômeno da fragmentação teórica sobre o direito e, ao final, irá propor as bases para uma reconstrução teórica que aponta para a superação da cegueira inerente à auto-observação do sistema jurídico e para a consequente formulação de Teorias Ecológicas do Direito.

2. A TEORIA GERAL DO DIREITO - TGD

2.1 RAÍZES E CONSOLIDAÇÃO DA TEORIA GERAL DO DIREITO POSITIVO

Na origem da TGD, a busca por conceitos gerais universalizáveis se dava mediante um raciocínio indutivo, pois se tomava como premissa a série de particulares presentes no universo normativo[6]. Autores como Merkel, Bergbohm e Bierling estabelecem o programa teórico da TGD como “generalizações relativas aos fenômenos jurídicos”[7]. Em seus Princípios de Teoria do Direito, Bierling criticará as pretensões substanciais das teorias jusnaturalistas, apostando em generalizações formais.

Se foi um erro das teorias do direito natural assumir um determinado conteúdo jurídico - por mínimo que seja como sendo definitivo, segue-se que os princípios e conceitos que, em nossa opinião, devem formar o objeto da doutrina jurídica dos princípios, só podem ser essencialmente formais. (...) A doutrina dos princípios jurídicos já não deve representar a vida jurídica plena em si, mas apenas as condições gerais, a partir das quais o comum a todos os lugares e todos os tempos partem[8].

Nessa linha, a equação primitiva de Merkel[9] e Bergbohm[10] buscavam uma conexão entre a forma e o conteúdo positivo do direito. Para este último, a Teoria Geral do Direito cumpriria essa função e viria a ser considerada indispensável.

Afinal, este é um lugar muito apropriado onde as doutrinas gerais de uma área jurídica específica podem ser comparadas com as formas correspondentes da outra, e onde é fácil combinar as principais doutrinas jurídicas com os princípios das ciências afins mais próximas. Ou seja, onde, por um lado, juristas de diferentes especialidades apertam as mãos uns dos outros e, por outro, a jurisprudência positiva e filosófica também se conectam.[11]

Mesmo que, atualmente, muitos rejeitem a mera denominação de Filosofia do Direito (...), não parece haver dúvida: o desejo de aprofundar e generalizar certos conceitos e doutrinas principais da jurisprudência não pode, a longo prazo, ser disfarçada com fragmentos individualizados. Mais cedo ou mais tarde se tornará uma filosofia jurídica sistemática sobre novas fundações. E sendo metodicamente justificada, uma Filosofia Jurídica do Direito apenas volta a ficar disponível, então seu nome correto retornará à sua honra, mas significará algo completamente diferente do que costumava ser.[12]

A experiência com os “particulares” e as generalizações indutivas não eram, todavia, precedida por uma reflexão transcendental acerca do próprio conceito de direito[13]. Ou, quando havia, ainda transitava nas raízes da “antiga” Filosofia do Direito.

Al iniciarse el renacimiento de las especulaciones filosófico-jurídicas, fines del siglo XIX y comienzos del actual, abandonaron los juristas los procedimientos metódicos propuestos por aquellas escuelas, y dedicaron parte de sus afanes a la investigación de los métodos idóneos para el desarrollo de los estudios fundamentales acerca del derecho. (...) Las corrientes principales están representadas por el formalismo y la filosofía de los valores. Entre los defensores de la primera, podemos citar Slammler y Kelsen; entre los de la segunda, a Radbruch y a Lask.[14]

 

O projeto de uma TGD nos moldes apresentados até o final séc. XIX deixava em aberto o problema do fundamento, assim como negligenciava o problema da eficácia, pois esse dizia respeito às decisões políticas quanto às possibilidades do direito positivo. Para além daquilo que Machado Neto chamou de “o eterno retorno do direito natural” nos kantianos Stammler e Del Vecchio[15] e do cruzamento da ponte do lógico para o axiológico em Emil Lask[16], será o empreendimento de Kelsen aquele que irá melhor representar e consolidar as bases temáticas da Teoria Geral do Direito como uma abordagem formal-estrutural. Desde o Hauptprobleme der Staatsrechtslehre até a Reine Rechtslehre, Kelsen aprimoraria suas bases epistemológicas[17]. No Allgemeine Staatslehre, Kelsen ainda concebe a TGD como o resultado de uma análise comparativa de distintos ordenamentos jurídicos positivos que oferece conceitos fundamentais que permitiriam decrever o direito positivo de comunidades determinadas[18]. Todavia, na Reine Rechtslehre, sua Teoria Pura do Direito funda uma TGD pautada em bases epistêmicas mais rigorsas, especialmente se considerarmos os ajustes posteriores à primeira edição[19]. A construção do objeto científico não mais obedece a um movimento indutivo ou comparado, mas é pré-determinado por estruturas da consciência transcendental.

(...) no sentido da teoria do conhecimento de Kant, a ciência jurídica como conhecimento do Direito, assim como todo o conhecimento, tem caráter constitutivo e, por conseguinte, “produz” o seu objeto na medida em que o apreende como um todo com sentido. Assim como o caos das sensações só através do conhecimento ordenador da ciência se transforma em cosmos, isto é, em natureza como um sistema unitário, assim também a pluralidade das normas jurídicas gerais e individuais postas pelos órgãos jurídicos, isto é, o material dado à ciência do Direito, só através do conhecimento da ciência jurídica se transforma num sistema unitário isento de contradições, ou seja, numa ordem jurídica. Esta “produção”, porém, tem um puro caráter teorético ou gnosiológico. Ela é algo completamente diferente da produção de objetos pelo trabalho humano ou da produção do Direito pela autoridade jurídica.[20]

A mais evidente expressão desse postulado epistemológico (teorético-gnosiológico, como registra Kelsen) é a consideração da Grundnorm como norma “pensada” e como condição lógico-transcendental[21] para a formação do ordenamento jurídico. “Com a sua teoria da norma fundamental a Teoria Pura do Direito de forma alguma inaugura um novo método do conhecimento jurídico” responsável por elaborar transcendentalmente aquilo que os juristas fazem inconscientemente[22].  E, uma vez solucionado o problema do fundamento, a Teoria Pura do Direito se legitima como uma “teoria do Direito positivo - do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial”, sendo, para tanto, uma “teoria geral do Direito, [e] não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais”[23].

Resolvido o problema epistêmico quanto ao fundamento, a TGD se firma como um potente programa científico que seria capaz tanto de introduzir estudantes de Direito frente ao seu objeto quanto aprimorar a capacidade de raciocínio jurídico do operador do Direito, sem que fosse necessário problematizar a justificação axiológica daquele sistema jurídico que estava sendo conhecido ou operado, tampouco problematizar sua capacidade de transformação da realidade normada[24]. Tão potente que, mesmo aqueles que buscaram ultrapassar os limites da “crítica” kelseniana reconheceriam a importância da TGD, ainda que limitada a uma descrição lógico-estrutural do direito positivo[25].

2.2 TRANSFORMAÇÕES DA TEORIA GERAL DO DIREITO NO HORIZONTE DA CRÍTICA AO POSITIVISMO JURÍDICO

Os limites cognitivos impostos pela Estética Transcendental de Kant[26] – que colocava o espaço e o tempo como pressupostos do conhecimento – não seriam abalados apenas pelas novas possibilidades abertas pelo neokantismo (que tornará possível deslocar o problema do direito da prática para o conhecimento). Transformações no plano da Filosofia, com destaque para a tradição fenomenológica de Husserl[27], abriram novas possibilidades para a tradição das chamadas “ciências do espírito” e, especialmente a partir dos anos 1930, surgiram uma série de concepções teóricas que comportarão em seus respectivos programas novas concepções de “fundamento” para o direito. Revelam-se em autores como Rudolf Smend[28], Miguel Reale[29], Carlos Cossio[30], Recasséns Siches[31] e, por último, mas que talvez represente o giro mais emblemático, em Gustav Radbruch com sua “fórmula” de correção do direito pela “justiça”[32]. Cada um a seu modo, essas diferentes concepções teóricas colocavam o “fundamento” do direito em um plano que ultrapassava as estreitas possibilidades sintáticas da lógica e solidificava a alargada variação semântica da norma. A epistemologia que as suportava perdia em segurança cognitiva mas, em tese, conferiria maior segurança em face do arbítrio político do intérprete.

Todavaia, esses novos programas teóricos tendem a não recusar o empreendimento de uma TGD. Miguel Reale, mesmo propondo uma teoria tridimensional do direito que abarcava em seu objeto, a um só tempo, o valor, o fato e a norma, mantém a TGD como uma teoria geral do direito positivo.

Ela é tão positiva como o direito positivo, isto é, não alimenta qualquer preocupação de indagar das condições ou pressupostos últimos e transcendentais da experiência jurídica, como faz a Filosofia. A Teoria Geral do Direito tem por fim, como se vê, a determinação das estruturas lógicas da experiência jurídica em geral, de tal modo que as suas conclusões, como já dissemos, sejam válidas tanto para o jurista como para o sociólogo ou historiador do direito. A Teoria Geral do  Direito elabora também seus princípios, mas como generalizações conceituais, a partir da observação dos fatos, em função das exigências práticas postas pela unidade sistemática das regras. (...) aqueles princípios gerais (...) acham-se condicionados pelos princípios transcendentais da Filosofia Jurídica.[33]

Essa conexão com princípios transcendentais da Filosofia Jurídica é acentuada e explicitada em outros modelos. Machado Neto, por exemplo, acentuava a natureza epistemológica da TGD.

Assim, temos também por demonstrado que o estudo dos conceitos básicos daelaboração científica do direito, que constituem a temática da teoria geral do direito (...) é de indiscutível natureza epistemológica . E se acaso uma teoria geral do direito comporta ainda uma enciclopédia jurídica, isto é, o estudo dos vários ramos do direito em seu conceito, sua fundamentação, sua temática etc. que envolve, para efeito de exemplificação, certa dose de conhecimento propriamente jurídico e – por que não? – um capítulo dedica à conceituação da técnica jurídica, da teoria da interpretação, da integração e da aplicação (direito intertemporal e interespacial), nada disso modifica oseu caráter básico de estudo epistemológico.”[34]

 

A TGD não recusa suas conexões com a Filosofia, tampouco a reduz a uma reflexão sobre a forma jurídica. Atua como um acoplamento entre reflexões filosófico-ontológicas e o direito positivo a partir de “generalizações conceituais” que traduzem desde a estrutura lógica universal do fenômeno jurídico-positivo a regionalismos proto-dogmáticos que sustentam determinadas áreas do direito, a exemplo da Teoria Geral do Direito Civil, da Teoria Geral do Processo, da Teoria do Delito, etc.

2.3 AS IMPOSSIBILIDADES DA TEORIA GERAL DO DIREITO NAS TEORIAS CRÍTICAS

A reaproximação da TGD às suas bases filosóficas e a reconfiguração de suas funções não impedem o surgimento de críticas mais contundentes. A principal delas deriva das teorias críticas neo-marxistas, que negam tanto uma possível ancoragem filosófico-transcendental de seus conceitos quanto a “inocência” das generalizações conceituais decorrentes dos padrões assumidos por determinado direito positivo. Pashukanis, reconhecendo o distanciamento das doutrinas socialistas em relação às teorias do direito, propõe uma crítica que enfrente a TGD “por dentro”. Para ele, sob um manto de pureza e atitude descritiva, a TGD afirmava as estruturas de um direito burguês e, justamente por isso, não poderia ser ignorada.

¿Es capaz la jurisprudencia de desarrollarse en una teoría general del derecho, sin disolverse por ello en la psicología o bien en la sociología? Tal teoría general del derecho, que no explica nada, que a priori vuelve la espalda a las realidades derecho, es decir a la vida social, y que se dedica a las normas sin ocuparse de su origen ¡lo cual es una cuestión metajurídica, o de sus relaciones con cualesquiera intereses materiales, no puede pretender el título de teoría sino únicamente en el sentido en que se suele hablar por ejemplo de una teoría del juego de ajedrez. Tal teoría no tiene nada que ver con la ciencia. Esa "teoría" de ninguna manera pretende examinar el derecho, la forma jurídica, en tanto que forma histórica, pues de ninguna manera se dirige a estudiar la realidad. Por eso, para utilizar una expresión vulgar, no hay mucho que sacar de ella. (...) Aunque la mayoría de los cursos sobre la teoría general del derecho comienza habitualmente por tales o cuales fórmulas, en realidad éstas sólo dan en general una representación confusa, aproximada y desarticulada del fenómeno jurídico. Se puede afirmar de manera categórica que las definiciones del derecho no nos enseñan gran cosa sobre lo que él es realmente, y que inversamente el especialista nos hace conocer tanto más profundamente el derecho como forma cuanto menos se limita a su propia definición. La causa de este estado de cosas es muy claro: un concepto tan complicado como el de derecho no puede ser aprehendido exhaustivamente por una definición según las reglas de la lógica escolástica, per genus y per differentium specificam.[35]

 

Em sentido semelhante, tomando por base as estratégias introdutórias ao “fenômeno jurídico”, Michel Miaille propõe uma abordagem que nega a existência de generalizações universais, destacando que são características próprias do direito capitalista.

 

Todos os manuais que querem fazer a introdução do conhecimento do direito utilizam sempre o termo único de “direito”, qualquer que seja o sistema jurídico utilizado. Sem querer, logo à partida, comete-se um erro fundamental, porque são agrupadas sob essa designação realidades muito diferentes. (...) o “direito” como sistema de regras não tem, nem na sua existência e no seu funcionamento, nem na ideologia que suscita, o mesmo sentido numa sociedade feudal ou numa sociedade capitalista. É, pois, incorreto não tomar em consideração estas diferenças. O conceito de instância jurídica dá conta desta necessidade. O próprio termo indica que se trata de uma parte de um todo e que, portanto, não tem valor ou não é compreensível senão em função deste todo; mas, por outro lado, significa que este todo, sendo um dos modos de produção teoricamente definidos, dá a esta instância um lugar, uma função, uma eficácia particulares. Funcionando o sistema de regras jurídicas de modo diferente segundo os modos de produção, é, pois, necessário abandonar radicalmente a imagem de um “fenómeno jurídico” que atravessaria as épocas e as sociedades, sempre igual a si próprio. E este preconceito não histórico que permite aos nossos autores falar de “direito” como se se tratasse sempre e em toda a parte da mesma coisa. Não tenho, no entanto, a ambição de fazer introdão ao direito em geral. Tento apenas fazer a introdução ao “direito” particular da sociedade na qual vivemos. Para falar mais exatamente, trata-se de uma introdução à instância jurídica no seio de uma sociedade dominada pelo modo de produção capitalista.[36]

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